domingo, 5 de março de 2017

Recordar, esse perigo (Danuza Leão)


O que fazer dos velhos discos, aqueles que você guardou porque achou que eram importantes - e que trazem, cada um deles, lembranças de momentos vibrantes, como paixões que pareciam de filme francês ou dores de cotovelo inesquecíveis? Naquele tempo tudo era festa, até os sofrimentos por amor. Mas, voltando aos discos: ouvir, 
nunca mais, pois o toca-discos (esse móvel? objeto?) já pertence à pré-história.
 Mas eles estão lá, na estante, e é preciso ter nervos de aço, 
sem sangue nas veias e sem coração, para se desfazer deles.


Com nem o porteiro, que sempre resolve esse tipo de problema, tem toca-discos, 
só mesmo a lata de lixo, que tristeza! Além dos discos, tem as fitas e, além das fitas, 
os CDs que depois do iPod fazem parte de um passado remoto.

Quanto maior a quantidade, maior o problema; encarar o passado não é fácil, 
e sessões de nostalgia costumam terminar mal. Algumas fotos trazem lembranças alegres de tempos felizes que nunca mais. E "nunca mais" são duas palavras difíceis de aceitar - tratem elas de um homem ou de coisas muito mais sérias, 
como o cigarro que você deixou e que também nunca mais.

Se num dia de chuva der aquela vontade de puxar uma tristeza, pense na noite de ontem, em que você não fez nada de extraordinário além de ver um filme na televisão comendo uma pizza; pois fique sabendo que até esse momento banal faz parte do "nunca mais". 
E, se quiser ficar ainda pior, nada como abrir a caixa de fotos: 
vai ter um belo dia pela frente, e não diga que eu não avisei.

O que fazer, afinal, desse monte de coisas que é nossa vida - aliás, foi nossa vida? 
Se tiver coragem, jogue tudo em um saco de lixo, leve para o sítio e prepare uma bela fogueira. Mas quem consegue? Quem sabe você fica aliviada, leve, 
achando que se livrou do passado, que a partir dali é só o presente e o futuro. 
Mas não tenha tanta certeza assim; quem somos nós se não temos passado?

A gente acaba empurrando com a barriga e adiando - quem sabe um dia desses, 
com um amigo para ajudar, tomando um uísque e ouvindo Roberto Carlos. 
E ainda tem mais: além dos disco, fitas e fotos, tem os recortes de jornais e revistas.

Não é fácil jogar fora o recorte com seu nome publicado pela primeira vez num jornal. Aquela página amarela arrasa, mas lembra o que você sentiu quando viu sua primeira foto numa revista? A vida é mesmo curiosa: tudo o que se guarda é para lembrar, 
e tem uma hora em que só se quer esquecer, vai entender. E tem as cartas, ai, meu Deus. As de amor, assim como as fotos desse tempo, é de praxe que sejam rasgadas logo que o namoro acaba - e reze para que as que você escreveu tenham sido destruídas, pois, 
se alguma viesse parar em suas mãos, seria caso de morrer, tal a vergonha.

A natureza humana é espantosa: como as pessoas são diferentes umas das outras. Penso, com inveja, mas que vão às festas do tipo "parece que foi ontem" e nas que se encontram uma vez por ano com as amigas do colégio para falar do passado. E nas famílias que se reúnem aos domingos para almoçar e, depois olham fotos de viagem, 
fitas de vídeo feitas nas férias, comentam sorrindo como os netos cresceram e, depois, vão dormir sem nem precisar tomar tranquilizante, na mais completa paz.

Elas não sabem quanto são felizes.

(texto publicado na revista CLAUDIA ano 51 - agosto de 2012)